Tudo começou com um Martini num pub
bem aquecido no centro daquela cidade gelada. Que era gelada de todas as formas
que a palavra gelada podia conferir. E entre um gole e outro, enquanto o cantor
animava o ambiente com um violão bem suave e uma voz rouca pouco marcante, um
aglomerado de lembranças e fotografias carregadas de sentimentos iam passando
diante dos seus olhos castanhos escuros que fitavam o nada que estava preso
entre o barman e as prateleiras. Ela se lembrou de quando seus cabelos ainda
eram vermelhos, na sua boca ainda havia artifícios que prometiam consertar os
dentes, e nos seus olhos sempre o reflexo do chão, que era o único lugar a se
olhar enquanto todas as outras duas amigas já tinham olhos azuis garantidos.
Foi uma adolescência melancólica, para alguém que apesar de conseguir observar
os padrões muito bem, se deixava manipular por eles, e sofrer duras penas e
rejeições por seus cachos avermelhados não estarem dentro dele. Ou deles. Mas
era um novo dia, um novo tempo, seus cachos agora eram castanhos mel e seu
manequim era 38. Nada mal para alguém que continuava comendo McDonalds com a
mesma freqüência de anos atrás e trabalhava 8 horas por dia programando códigos
em computadores... Sentada. E agora ela estava sentada também, se alcoolizando pateticamente
pra tentar colocar flashes de Hollywood em uma vida que tinha deixado de ser
animada desde o último Rafael que tinha se aproximado dela pra pedir o telefone
da Teresa. Típico. Em anos de sustos e decepções, uma hora a coisa anestesia. E
fica tudo bem, afinal, “bem”, não se passa fome, dá pra pagar a academia, o Martini
quinta à noite. Estava tudo bem.
- Quem diria que eu
encontraria você por aqui, e tomando Martini, olha só...
Uma voz masculina familiar que era ouvida há
uns 7 anos. Um homem, no mínimo, 10 anos mais velho, que havia se interessado
por sua outra amiga, Alice, e que costumava perturbá-la a troco de informações.
Zonza por ter sido retirada de sua terapia interna e por estar com a segunda
taça de Martini quase vazio, sem dar muita importância a quem falava, deu uma
fungada em sua taça para ver se o cheiro da bebida era tão característico a
ponto de uma pessoa reconhecê-la apenas olhando e balbuciou.
- E não é que o mundo
dá voltas?! ... – Ela sequer olhou-o enquanto ele a fitava fixamente, esboçando
um sorriso lateral de quem se diverte com uma descoberta –
- Posso te pagar uma
bebida? – Ele perguntou, e imediatamente ela o olhou, ainda com o copo quase
vazio na mão direita, com a expressão de quem estranha uma atitude não esperada
–
- Não é preciso,
Maurício... – Ela pescou com muita facilidade uma caneta preta da bolsa de
couro queimado que estava no banco ao lado, se levantou do banco sutilmente
para alcançar o porta guardanapos que
estava na mesa embutida atrás do balcão, puxou um e sob os olhos concentrados daquele
homem de aproximadamente 40 anos, se pôs a escrever.
Ela ainda com a caneta
entre os dedos arrastou o papel rabiscado até ele, tomou o último dramático
gole de Martini, e enquanto colocava a bolsa no ombro direito, guardava a
caneta e se preocupava em não esquecer a comanda sobre o balcão, disse com uma
voz que misturava genialmente firmeza com fadiga.
- O celular da Camila
mudou, é esse agora... E coloquei o email embaixo também caso você queira uma
aproximação menos impactante. Até mais.
E enquanto desfilava
seus passos amargurados rumo ao caixa, ainda sob o olhar de Maurício que agora
também se ocupava em pegar um guardanapo, Heloísa preferiu excluir aquele
momento da mente e concentrar-se, como sempre, no ordinário. Para não sair do
eixo confortável e controlado no qual ela tinha demorado muito pra encontrar,
pra não retomar carências velhas e doídas, pra não chorar. Pegar a carteira, o
dinheiro, pagar a conta... Sequencialmente, apenas o ordinário. E à medida em
que ela ia executando seus movimento robotizadas, já ia calculando lenta e
friamente todos os movimentos que necessitaria para chegar em casa, bem, da
mesma forma como tinha chegado até ali.
- Espero que um dia me deixe
pagar o Martini. – Ele apenas abriu a mão de Heloísa e depositou um guardanapo
amassado em bolinha, e saiu –
Ela pagou a conta, e enquanto
marchava pelo estacionamento se esforçava para respirar sem perder o fôlego,
lembrando-se do motivo pelo qual havia escolhido a carreira militar.
Disciplina, organização, controle. Ela não perderia o controle... Não depois de
8 anos fingindo tão bem que o passado não a incomodava, uma pessoa não teria o
poder de mudar isso. Se Teresa e Camila que estavam sempre presentes não o
conseguiam, um professor de oitava série que lecionava uma disciplina odiosa não
seria a gota d’água, não mesmo. Ela não permitiria.
Após mais alguns
segundos de passos o bipe da trava do carro a fez despertar do transe, e ao
sentar no banco dianteiro, ela se permitiu respirar aliviada por ter que saído
bem até ali. Ao abrir o papel amassado notou que havia apenas um nome;
Maurício. Um número de celular e um email. Ela precisou gargalhar porque aquele
papel tinha tirado aquela noite do ordinário cotidiano e levado ao extraordinário
em 5 segundos. De que se tratava isso? Ela deu de ombros, amassou novamente o
guardanapo, ligou o carro e ao encaminhar sua Pajero preta rumo à saída do
estacionamento, arremessou o papel o mais forte e longe que seu braço esquerdo
fosse capaz de fazer.
Aquela era uma noite memorável, porque pela
primeira vez ela observou o sistema e não se deixou pressionar, porque ela não
desonraria todas as demais garotas que estão “fora do estilo” só porque agora
ela tinha um sorriso lindo, uma calça 38 e a pele sem espinhas. Porque ela
jamais se deixaria envolver por quem só a quisesse corpo. Ela era mais, era
alma... Era uma alma um tanto amargurada sim, mas era mais do que um copo de
Martini e recordações baratas de bêbado pudessem custear.