sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Estorinhas #1








            Tudo começou com um Martini num pub bem aquecido no centro daquela cidade gelada. Que era gelada de todas as formas que a palavra gelada podia conferir. E entre um gole e outro, enquanto o cantor animava o ambiente com um violão bem suave e uma voz rouca pouco marcante, um aglomerado de lembranças e fotografias carregadas de sentimentos iam passando diante dos seus olhos castanhos escuros que fitavam o nada que estava preso entre o barman e as prateleiras. Ela se lembrou de quando seus cabelos ainda eram vermelhos, na sua boca ainda havia artifícios que prometiam consertar os dentes, e nos seus olhos sempre o reflexo do chão, que era o único lugar a se olhar enquanto todas as outras duas amigas já tinham olhos azuis garantidos. Foi uma adolescência melancólica, para alguém que apesar de conseguir observar os padrões muito bem, se deixava manipular por eles, e sofrer duras penas e rejeições por seus cachos avermelhados não estarem dentro dele. Ou deles. Mas era um novo dia, um novo tempo, seus cachos agora eram castanhos mel e seu manequim era 38. Nada mal para alguém que continuava comendo McDonalds com a mesma freqüência de anos atrás e trabalhava 8 horas por dia programando códigos em computadores... Sentada. E agora ela estava sentada também, se alcoolizando pateticamente pra tentar colocar flashes de Hollywood em uma vida que tinha deixado de ser animada desde o último Rafael que tinha se aproximado dela pra pedir o telefone da Teresa. Típico. Em anos de sustos e decepções, uma hora a coisa anestesia. E fica tudo bem, afinal, “bem”, não se passa fome, dá pra pagar a academia, o Martini quinta à noite. Estava tudo bem.
            - Quem diria que eu encontraria você por aqui, e tomando Martini, olha só...
Uma voz masculina familiar que era ouvida há uns 7 anos. Um homem, no mínimo, 10 anos mais velho, que havia se interessado por sua outra amiga, Alice, e que costumava perturbá-la a troco de informações. Zonza por ter sido retirada de sua terapia interna e por estar com a segunda taça de Martini quase vazio, sem dar muita importância a quem falava, deu uma fungada em sua taça para ver se o cheiro da bebida era tão característico a ponto de uma pessoa reconhecê-la apenas olhando e balbuciou.
            - E não é que o mundo dá voltas?! ... – Ela sequer olhou-o enquanto ele a fitava fixamente, esboçando um sorriso lateral de quem se diverte com uma descoberta –
            - Posso te pagar uma bebida? – Ele perguntou, e imediatamente ela o olhou, ainda com o copo quase vazio na mão direita, com a expressão de quem estranha uma atitude não esperada –
            - Não é preciso, Maurício... – Ela pescou com muita facilidade uma caneta preta da bolsa de couro queimado que estava no banco ao lado, se levantou do banco sutilmente para alcançar o  porta guardanapos que estava na mesa embutida atrás do balcão, puxou um e sob os olhos concentrados daquele homem de aproximadamente 40 anos, se pôs a escrever.
            Ela ainda com a caneta entre os dedos arrastou o papel rabiscado até ele, tomou o último dramático gole de Martini, e enquanto colocava a bolsa no ombro direito, guardava a caneta e se preocupava em não esquecer a comanda sobre o balcão, disse com uma voz que misturava genialmente firmeza com fadiga.
            - O celular da Camila mudou, é esse agora... E coloquei o email embaixo também caso você queira uma aproximação menos impactante. Até mais.
            E enquanto desfilava seus passos amargurados rumo ao caixa, ainda sob o olhar de Maurício que agora também se ocupava em pegar um guardanapo, Heloísa preferiu excluir aquele momento da mente e concentrar-se, como sempre, no ordinário. Para não sair do eixo confortável e controlado no qual ela tinha demorado muito pra encontrar, pra não retomar carências velhas e doídas, pra não chorar. Pegar a carteira, o dinheiro, pagar a conta... Sequencialmente, apenas o ordinário. E à medida em que ela ia executando seus movimento robotizadas, já ia calculando lenta e friamente todos os movimentos que necessitaria para chegar em casa, bem, da mesma forma como tinha chegado até ali.
            - Espero que um dia me deixe pagar o Martini. – Ele apenas abriu a mão de Heloísa e depositou um guardanapo amassado em bolinha, e saiu –
            Ela pagou a conta, e enquanto marchava pelo estacionamento se esforçava para respirar sem perder o fôlego, lembrando-se do motivo pelo qual havia escolhido a carreira militar. Disciplina, organização, controle. Ela não perderia o controle... Não depois de 8 anos fingindo tão bem que o passado não a incomodava, uma pessoa não teria o poder de mudar isso. Se Teresa e Camila que estavam sempre presentes não o conseguiam, um professor de oitava série que lecionava uma disciplina odiosa não seria a gota d’água, não mesmo. Ela não permitiria.
            Após mais alguns segundos de passos o bipe da trava do carro a fez despertar do transe, e ao sentar no banco dianteiro, ela se permitiu respirar aliviada por ter que saído bem até ali. Ao abrir o papel amassado notou que havia apenas um nome; Maurício. Um número de celular e um email. Ela precisou gargalhar porque aquele papel tinha tirado aquela noite do ordinário cotidiano e levado ao extraordinário em 5 segundos. De que se tratava isso? Ela deu de ombros, amassou novamente o guardanapo, ligou o carro e ao encaminhar sua Pajero preta rumo à saída do estacionamento, arremessou o papel o mais forte e longe que seu braço esquerdo fosse capaz de fazer.
Aquela era uma noite memorável, porque pela primeira vez ela observou o sistema e não se deixou pressionar, porque ela não desonraria todas as demais garotas que estão “fora do estilo” só porque agora ela tinha um sorriso lindo, uma calça 38 e a pele sem espinhas. Porque ela jamais se deixaria envolver por quem só a quisesse corpo. Ela era mais, era alma... Era uma alma um tanto amargurada sim, mas era mais do que um copo de Martini e recordações baratas de bêbado pudessem custear.

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